Uma trilha sonora para o post de hoje, dedicada aos jogadores que jogaram 3d6 e se foderam:
Sempre que se constrói um personagem novo em AD&D, o jogador passa por um inferno particular logo no primeiro passo. Você tem um monte de ideias e conceitos bacanas na cabeça sobre uma determinada raça e classe e então acontece: os dados geram valores horríveis! Você não tem números altos o bastante para ingressar naquela classe que você queria e vai ter que se contentar com uma outra escolha, ou implorar para o GM descolar uma "segunda chance" nas rolagens ou adaptar alguma coisa.
Bem, se você é um daqueles jogadores que fica inconformado com o fato de não poder escolher sua própria raça ou classe, este artigo tem como objetivo oferecer algo bem diferente da bajulação dos novos jogos onde "todo mundo pode ser o que quiser". Sei que mesmo em jogos mais saudosistas, o GM acaba permitindo novas rolagens de dado para determinar habilidades ou pontos de vida, mas queria propor uma discussão baseada em uma pergunta:
Você já parou para pensar que descartou um personagem realmente incrível?
A vida é uma vadia que vai arrancar de você as oportunidades que você mais queria. Se é assim na vida real, porque diabos você acha que aquele seu aventureiro que nem tem onde cair morto vai ter tudo o que quer?
Quando você joga dados para determinar os valores das habilidades do seu personagem, são grandes as chances de você não conseguir EXATAMENTE que queria, as vezes os valores foram tão baixos que nem atender os pré-requisitos de uma classe o personagem é capaz.
Bem, existe um motivo para isso: AD&D é um RPG baseado na literatura onde as histórias são majoritariamente protagonizadas por humanos e mesmos estes não andam em bandos exóticos como um grupo de rangers ou uma ordem de paladinos. Isso nunca existiu na literatura. Eventualmente eles irão sobressair dos humanos "normais" mas ainda assim são aventureiros com aptidões que conseguiram nas circunstâncias da vida. Eles não escolheram ser isso ou aquilo. Não existe uma "ficha de inscrição" para Guildas de Ladrões ou Ordem Arcana.
Veja o meu caso. Queria construir um Ranger, mas para isso precisaria tanto Força quanto Inteligência 13 além de uma Sabedoria e Constituição de no mínimo 14 cada. Bem eu joguei os dados e consegui alguns destes valores, mas nem todos - então não poderia ser um Ranger. Acabei por optar pela classe dos guerreiros e transferi minha frustração para o personagem. Isso mesmo! Eu queria que ele fosse um ranger então fiz dele um guerreiro que gostaria de ser um Ranger, mas que por algum motivo não conseguiu.
Ótima ideia! Eu ia trabalhar essa motivação e o motivo pelo qual ele não se tornou ao longo das aventuras. Mas então aconteceu: tirei 3 na jogada do dado de vida. Maldição! Um guerreiro com 3 pontos de vida! Decidi então que ele era um veterano de guerra, com ferimentos (já cicatrizados) que o tornavam menos apto a se esquivar dos golpes - daí o motivo dele ter apenas três pontos de vida. Mas decidi que este também ia ser o motivo pelo qual ele não se tornou um Ranger. Ele foi OBRIGADO a lutar em uma guerra entre Senhores Feudais e acabou se ferindo e inviabilizou seus planos de ser um andarilho dos ermos.
Agora ele era um forasteiro que recentemente encontrou um grupo de aventureiros que precisavam de um veterano para guiá-los por um terreno que ele conhecia bem (e este será o gancho da aventura). E assim foi criado meu guerreiro capenga. Apenas olhando a ficha eu já saquei o tom de como ele seria. Mas o importante é: inventei tudo isso porque tive que responder ao aleatório. Meu personagem é uma droga, mesmo para um guerreiro que queria ser ranger. Talvez ele morra na primeira aventura, talvez não. Mas sem dúvida vai ser interessante vê-lo em ação.
SURPREENDENDO COM A PRÓPRIA CRIAÇÃO
O legal de aceitar o que os dados te ofereceram é que você irá REAGIR a eles. Você vai ter que adaptar algumas coisas, claro. Mas entenda que não ter o controle exato do que seu personagem será acaba dando um pouco mais de dramaticidade e, ouso dizer, realismo. Ninguém é exatamente o que desejava ser. Os heróis, mesmo os mais perfeitos, acabam ocultando alguma frustração.
Quando você obtém resultados inesperados nos dados você tem uma chance de sair da zona de conforto e terá que fazer novas escolhas que normalmente não faria. Enxergue isso como uma oportunidade para jogar um personagem completamente diferente.
Então, quando seu personagem sobreviver à primeira masmorra você vai ver que ele é melhor do que você pensava e então ele vai te surpreender quando subir de nível e isso irá minimizar ou anular os efeitos das jogadas ruins - esta é a forma do jogo dizer que seu personagem superou as dificuldades.
Fiz questão de destacar a ultima expressão. Entenda que é isso que faz de um herói um herói. Começar perfeitinho pode ser legal, mas no fim das contas ele não tem muito a oferecer para você. Todos os obstáculos que ele enfrenta são problemas alheios, nunca é um problema dele, de verdade. Ele pode se importar com os outros, mas ele em si não tem problemas.
Muitos usam a expressão "from zero to hero" (de zero a herói), mas eu iria mais além : aceite um personagem problemático e você estará abaixo do zero. Não basta enfrentar o mal exterior, aquele escondido no templo em ruínas ou na floresta sombria. O personagem deve enfrentar a si mesmo, suas limitações o obrigarão a tomar atitudes diferentes e únicas. Talvez isso nos faça entender porque os heróis (os verdadeiros) relutam em seguir em frente. Dentro deles eles talvez queriam ser outra coisa para enfrentar isso.
Talvez meu guerreiro coloque em dúvida seus talentos em combate e acredite que poderia enfrentar tudo melhor se pudesse ter sido um ranger. Seus poucos pontos de vida irão me obrigar a adotar táticas mais conservadoras se eu quiser que ele suba de nível e recupere os pontos de vida que me faltaram na primeira rolagem. Meu plano? Bem, preciso de um arco e flecha - isso é fato. Depois preciso ver se encontro alguma poção de cura e vou garantir que no começo ele ande próximo ao clérigo do grupo.
O PAPEL DO MESTRE
Não adianta nada eu encarar o desafio de jogar com um personagem capenga se o GM apenas olhar para o livro de regras. É importante que o GM entenda que eu não aceitei interpretar um personagem contrário aos meus planos apenas para vê-lo morrer na primeira sessão de jogo. Eu quero imaginar que eu vou ter alguma chance nisso tudo.
Não me refiro ao fato do Mestre pegar leve nas jogadas de dano ou mentir sobre os resultados dos dados a todo instante. Eu quero que ele tenha noção de que eu vou agir de acordo com que os dados me deram. Vou querer que minhas ideias, se forem boas, sejam consideradas como uma opção real dentro do jogo. Que minha astúcia seja tão importante quanto um golpe poderoso de espada.
Por isso, se você é o Mestre nessa história toda, precisa entender que se o grupo está bolando coisas para evitar um confronto direto porque o guerreiro do grupo é um bosta, então é bom que seja este o tom das primeiras aventuras e que ele não se prenda à receita básica do "entra no aposento, rola combate, pega o tesouro". Se ele for pra esse lado e não escutar minhas ideias sobre como eu quero encurralar os monstros ou atacá-los com meu arco em um terreno elevado, sem dúvida vai ser um TPK ou, no mínimo, meu odiado personagem nunca terá a chance de ser um herói - e isso será realmente uma pena...
TAVERNEIRO LOUCO
o taverneiro que queria ser pirata
Nenhum comentário:
Postar um comentário